quinta-feira, 12 de abril de 2012



Toda adaptação dá origem a uma nova obra. Aqui também. A adaptação de Notre Dame de Paris, de Victor Hugo, por João Gomes de Sá é, de fato, uma outra obra. O poeta reuniu coragem para transpor a história passada na Paris medievalesca para o sertão nordestino.

João Gomes de Sá é alagoano e autor profícuo, tendo escrito A luta de um cavaleiro contra o Bruxo Feiticeiro, profundamente enraizado na tradição cordelística. Em O Corcunda de Notre Dame, a adaptação de Notre Dame de Paris, ele se supera em maestria. Suas sextilhas iniciais são perfeitas:
O romance do Corcunda
De Notre Dame, leitor,
Escrito por Victor Hugo,
Aquele grande escritor.
Em versos vou recontá-lo
Sua atenção, por favor.

Antes, porém, quero dar
Essa breve explicação:
O cenário do Corcunda
Eu trago para o sertão;
O Nordeste brasileiro
É palco de toda ação.

Além da mudança do cenário para Santana de Cajazeira, denominação nordestina, alguns personagens também mudam de nome. Quasímodo passa a Quasimudo e seu guardião a Padre-Mal. Para nós é de extrema sagacidade a transposição da história. Ao poeta deve ser dado o direito de, na hora da adaptação, escolher cenário e nomes novos, sem alterar o enredo e o argumento original, já que o objetivo da coleção é apresentar a obra, incentivar o leitor a contactar a matriz. Além de nutrir a tradição do cordel narrativo adaptado de ousadia, na transposição do cenário, João Gomes assina seu cordel com o tradicional acróstico grafado JGSACORDEL:
Jamais o pobre Corcunda
Galgou deixar seu cantinho.
Santana de cajazeira
Abastece seu caminho,
Como elo para pedidos,
O norte para o bom ninho;
Recebe todo romeiro,
Dando-lhe muito carinho;
E espera ver seus fiéis
Libertos de tanto espinho.

Coisas e mais sobre Leandro Gomes de Barros

1. No dia 4 de marçoo aniversário de morte do maior poeta cordelista do Brasil: Leandro Gomes de Barros. Minha alegria de ter cruzado com Leandro e com sua obra é o que deve ser contado. Decidi reler toda a obra do bardo e identificar algumas peculiaridades. E assim vai: Leandro foi um homem de seu tempo. Filho da primeira revolução industrial, não vacilou e aliou-se à máquina. Dessa forma ilustrou a capa de seus folhetos com fotografia, mídia recém-descoberta. É célebre a estampa de seu busto na contracapa de seus folhetos para evitar falsificação. Montou sua própria tipografia e começou a publicação em série de seu lavra. Contactou distribuidores e pensou uma estrutura de marketing positivo. E aqui há uma observação a fazer. Quando se diz que Leandro viveu do que escreveu é informação incompleta. Pois não só escreveu, como produziu, diagramou, distribuiu, contabilizou, imprimiu, corrigiu, enfim foi o super-homem na linha de produção. Da concepção, escrita, impressão e distribuição foi ele o responsável. Viveu de seu trabalho diuturno. Leandro só pensava em cordel e em como aprimorá-lo, transformando-o em um item agradável aos olhos, ao tato e à mente. Literatura e entretenimento, isso o que queria Leandro.

Um poema perdido de Leandro?

Conta-nos Sebastião Nunes da Silva de fato acontecido entre Leandro e seu amigo e contraparente Francisco das Chagas Batista, quando este residia em Guarabira-PB. Numa das constantes visitas de Leandro, foram a um casamento a cavalo. Desse passeio resultou um poema de Leandro intitulado O Poltro do Meu Colega, referência ao cavalo desengonçado por ele montado. Ainda não encontrei tal poema, tampouco encontrei alguém que já o tenha lido. Sei apenas, noticiado pelo Nunes Batista, da resposta escrita em folheto por Chagas Batista e também desaparecida do acervo da Biblioteca Nacional. Transcrevo a primeira estrofe. No caso de não haver empecilho quanto aos direitos autorais posso transcrevê-la totalmente:

Leandro Gomes, um dia
Precisou de meu cavalo,
Falou-me para alugá-lo
Disse que me pagaria!
Eu não marquei a quantia
E entreguei-lhe o sendeiro,
Ele que é mau cavaleiro
Lá no caminho caiu,
E ao voltar, me iludiu
Não quis pagar meu dinheiro…

Um equívoco de Câmara Cascudo

Depois da morte de Leandro, em 1918, sua obra foi administrada por seu genro Pedro Batista. Depois, por volta dos anos 20, os direitos autorais foram adquiridos pelo poeta João Martins de Ataíde que passou a assinar os folhetos, adulterando, inclusive, os acrósticos leandrinos. Aconteceu o mesmo quando da aquisição por José Bernardo da Silva que, omitindo o nome de Leandro, anotava-se como editor proprietário. Esses subterfúgios levaram Câmara Cascudo, o nosso impagável estudioso, a cometer um equívoco. Em seu Vaqueiros e Cantadores ele nos dá a autoria de A História de Pedro Cem como sendo de João Martins de Ataíde, à página 259, do nº 81 da coleção Reconquista do Brasil (Nova Série). Diz:

“O poeta popular João Martins de Ataíde reconstituiu o romance, escrevendo-o em sextilhas, ao gosto das cantorias nordestinas. Há várias edições. A que transcrevo é de junho de 1932, impressa em Recife, Pernambuco. Pedro cem continua tendo leitores e sua existência servindo de exemplo apavorador.”

Quatro versões para O Soldado Jogador

A primeira história de Leandro que li foi O Soldado Jogador. Anotada por Leonardo Mota e ouvida do Cego Aderaldo, foi transcrita em Cantadores. O que pretendo é descrever as cinco primeira estrofes de quatro versões que tenho para essa história para que observemos as mudanças no texto de cada uma delas. É claro que não atrapalham o sentido geral da obra, mas pode, além de servir de curiosidade, dar testemunho de que se pode fazer algo pior com as obras dos nossos autores de cordel. Por isso, certa vez, quando o nosso Marco Haurélio estava na Luzeiro, pedi que a editora observasse o ISBN das publicações. Dessa forma se evitaria a intervenção na obra definitiva. Transcrevo a versão de Leota, ouvida do Cego Aderaldo:

Era um soldado francês
Que se chamava Ricarte,
Jogador de profissão;
Nunca ele foi numa parte
Que não trouxesse no bolso
O resultado da arte.

Os franceses, nesse tempo,
Tinham por obrigação
— o militar e o civil —
Seguir a Religião;
O Papa fazia a lei,
Botava em circulação.

Ricarte, soldado velho,
Com trinta anos de tarimba,
Aonde ele achava jogo
De sete e meio ou marimba,
Dizia logo: —“Eu vou ver
Água na minha cacimba!”

Um dia, faltou-lhe o soldo…
Ricarte pôs-se a pensar
Onde podia haver jogo
Que ele pudesse jogar…
Era domingo e a Missa
Não havia de tardar.

Dinheiro não tinha um xis!
Fiado nem se falava,
Pois um soldado francês,
Na bodega em que comprava,
Só pegava um objeto
Porém depois que pagava…

MOTA, Leonardo. Cantadores. 6ª ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1987. Pg. 110-114


Versão da Antologia da Casa de Rui Barbosa


Perceba-se que não interferi na acentuação gráfica como era na época.

Era um soldado Francês
Que se chamava Ricardo
Jogador de profissão
E nunca foi numa parte
Que não trouxesse no bôlso
O resultado da arte.

Os franceses neste tempo
Tinham por obrigação
O militar ou civil
Seguir a religião
O Papa deitava a lei
Botava em circulação.

Ricardo soldado velho
Com trinta anos de tarimba
Aonde achava jôgo
De lasquinê ou marimba
Dizia logo eu vou ver
Água em minha cacimba.

Um dia faltou-lhe saldo
Pôs-se Ricardo a pensar
Onde podia haver jôgo
Que ele podesse jogar
Era domingo e a missa
Não havia de tardar.

Dinheiro não tinha um X
A crédito êle nem falava
Pois um soldado francês
Na taberna onde comprava
Só pegava no objeto
Porém depois que pagava.

LITERATURA POPULAR EM VERSO. Antologia. Tomo I. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, Casa de Rui Barbosa, 1964. Coleção de textos da língua portuguesa moderna-4. Pp. 457-460.

A versão de Irani Medeiros

Era um soldado francês
Que se chamava Ricarte
Jogador de profissão
E nunca foi numa parte
Que não trouxesse no bolso
O resultado da arte.

Os franceses nesse tempo
Tinham por obrigação
O militar ou civil
Seguir a religião
O Papa deitava a lei
Botava em circulação.

Ricarte soldado velho
Com trinta anos de tarimba
Aonde ele achava jôgo
De lasquinê ou marimba
Dizia logo: eu vou ver
Água na minha cacimba.

Um dia faltou-lhe o soldado
Pôs-se Ricarte a pensar
Onde podia haver jogo
Que ele pudesse jogar
Era domingo e a missa
Não havia de tardar.

Dinheiro não tinha um xis
A crédito êle nem falava
Pois o soldado francês
Na taberna onde comprava
Só pegava no objeto
Porém depois que pagava.

MEDEIROS, Irani (org). Leandro Gomes de Barros. No reino da poesia sertaneja. João Pessoa: Idéia, 2002.

A versão da Queima-Bucha

Era um soldado francês
Que se chamava Ricarte
Jogador de profissão
E nunca foi numa parte
Que não trouxesse no bolso
O resultado da arte.

Os franceses nesse tempo
Tinham por obrigação
O militar ou civil
Seguir a religião
O Papa deitava a lei
Botava em circulação.

Ricarte, soldado velho
Com trinta anos de tarimba
Aonde ele achava jogo
De lasquinê ou marimba
Dizia logo: — Eu vou ver
Água na minha cacimba!

Um dia faltou-lhe o soldo
Pôs-se Ricarte a pensar
Onde podia haver jogo
Que ele pudesse jogar
Era Domingo e a missa
Não havia de tardar.

Dinheiro não tinha um “xis”
A crédito ele nem falava,
Pois o soldado francês
Na taberna onde comprava
Só pegava no objeto
Porém depois que pagava.

BARROS, Leandro Gomes de. O soldado jogador. Mossoró: Queima-Bucha, 2005.

quarta-feira, 11 de abril de 2012

O Cachorro dos Mortos, de Leandro Gomes de Barros



Imaginem um crime brutal no qual três irmãos de uma mesma família são assassinados, levando a mãe a morrer em estado de choque e o pai a enlouquecer e também falecer desesperado e vário. Agora, imaginem que essa brutalidade foi praticada tendo como testemunha o fiel cachorro da família. Imaginem, ainda, que o crime ficou sem solução por quatro anos, mesmo cumpridas todas as diligências e tendo sido mobilizadas todas as autoridades do estado da Bahia. Coloquemos o nome do cachorro de Calar. Pois bem, meus amigos, é esse o argumento de O Cachorro dos Mortos, clássico entre os clássicos do cordel brasileiro. As autoridades literárias de plantão não o leram, os professores não o adotaram nos cursos de Letras do país, os críticos literários de vanguarda sequer sabem do que se trata, a mídia o ignora, as igrejinhas acadêmicas reunidas em Paraty alheiam-se a sua importância, mas o romance escrito por Leandro Gomes de Barros surpreende há aproximados 100 anos, best seller que é. Creio mesmo que a maioria de meus amigos aqui no Facebook não o conheça, mas não será por falta de aviso. Estive trabalhando no estabelecimento do seu texto a partir das dezenas de edições sucedentes. Desde a de Pedro Batista, já anotada e modificada, até à da Editora Luzeiro (cuja capa reproduzo), passando pelas de João Martins de Ataíde e José Bernardo. Continuarei estudando esse cordel, exemplo de história na qual a natureza denuncia o criminoso. Tentarei em breve lançar uma edição definitiva, com texto estabelecido e suas variantes.

sábado, 7 de abril de 2012

Os 4 do cordel



O cordel brasileiro, como hoje é, não tem qualquer raiz ibérica, mesmo com alguns pesquisadores insistindo nesse tese. A literatura de cordel ibérica ou francesa ou italiana, as folhas soltas, o corrido, nada têm em comum com o nosso cordel, forma poética. Há um sistema no cordel brasileiro: um autor, um editor, um leitor, um crítico. A literatura de cordel ibérica nunca teve, nem terá, porque morta, esse sistema. Os pais do cordel brasileiro são esses quatro cavalheiros enfatiotados aí:

São eles, no sentido horário: Leandro Gomes de Barros, o autor-editor-vendedor, criador da forma e do folheto; Silvino Pirauá, o poeta enciclopédico, criador do romance em versos; Francisco das Chagas Batista, fundador da Popular Editora, editor de Leandro, autor de antologias de poetas do povo; João Martins de Athayde, controverso editor e poeta, visionário do mercado do cordel, empreendedor ousado:

Observe-se em cada um o ar imponente de escritor e empresário, imagem distante daquela que alguns estudiosos nutrem chamá-los de analfabetos, autores de pouca ou nenhuma valia:

1. O ar bonachão de Leandro, com seu bigode de aço a furar os estudiosos da literatura brasileira, desafiando-os a encontrar um lugar para o cordel.

2. O ar intelectual de Pirauá como que a rir desses mesmos estudiosos, admirando-lhes a ignorância.

3. O ar desafiador de Chagas Batista chamando-os para a briga do punhal cordelístico contra a espada fumegante da crítica viciada.

4. O ar misterioso e despretensioso de Athayde como quem está se lixando para tudo isso

 

Os Cabras de Lampião, de Manoel D'Almeida Filho

Image

Os Cabras de Lampião é o clássico cordel de Manoel D'Almeida Filho. Foi um trabalho preparado pelo mestre poeta (nascido em Alagoa Grande-PB, em 1914) com muita pesquisa, muita delicadeza poética, muita lucidez. Nunca a história do herói do sertão foi tão esmiuçada em cordel. Nunca ouviremos nas mídias dedicadas às minúcias literárias que esse poema está inserido no rol das 10 mais importantes narrativas do séc. XX. Mas a academia alemã o considera. Na época em que isso aconteceu, o próprio Manoel de Almeida ficou chocado, pois, para ele, o livro seria uma biografia e não uma narrativa de ficção. Todavia o que D'Almeida não levou em consideração é que o seu texto é uma epopeia e, como tal, reúne em seus versos a história real tomando sol na praia do maravilhoso. Em 2014 celebraremos o centenário do grande desbravador do cordel brasileiro.

Os Cabras de Lampião, de Manoel D'Almeida Filho

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Os Cabras de Lampião é o clássico cordel de Manoel D'Almeida Filho. Foi um trabalho preparado pelo mestre poeta (nascido em Alagoa Grande-PB, em 1914) com muita pesquisa, muita delicadeza poética, muita lucidez. Nunca a história do herói do sertão foi tão esmiuçada em cordel. Nunca ouviremos nas mídias dedicadas às minúcias literárias que esse poema está inserido no rol das 10 mais importantes narrativas do séc. XX. Mas a academia alemã o considera. Na época em que isso aconteceu, o próprio Manoel de Almeida ficou chocado, pois, para ele, o livro seria uma biografia e não uma narrativa de ficção. Todavia o que D'Almeida não levou em consideração é que o seu texto é uma epopeia e, como tal, reúne em seus versos a história real tomando sol na praia do maravilhoso. Em 2014 celebraremos o centenário do grande desbravador do cordel brasileiro.

Grinaura e Sebastião



José Pacheco foi o autor de A Chegada de Lampião No Inferno, clássico entre os clássicos do cordel brasileiro. A história de Lampião no cordel toma um novo rumo a partir dele e vários folhetos vieram depois tentando o mesmo sucesso, sem alcançá-lo. Nele, o herói do sertão incendeia o inferno, criando uma quebradeira geral. Com muita sagacidade, Pacheco é consagrado entre os autores de maior reconhecimento no gênero humorístico em cordel, sem necessitar de artifícios que não sejam a criatividade e a presença de espírito. Mas não foi apenas um autor de gracejos. Escreveu também romances densos, com tramas complicadas e ótimos desfechos como A História Completa de Grinaura e Sebastião, trama rural de aventura. Na imagem, as capas da primeira edição, produzida no Recife em setembro de 1944, e a atual da Editora Luzeiro. Note-se na capa de 1944 a ilustração com par romântico hollywoodiano, desmistificando o conceito de capas com xilogravura.